
Imaginário x real: um estado entre conflitos e invenções
À luz de noções de cultura e identidade, Paraná se apoia na ideia de diversidade, mas guarda heranças paranistas e alimenta quadro histórico de exclusão de grupos sociais
Sentir-se desconfortável ao utilizar um calçado apertado ou uma roupa cuja numeração não atende às necessidades do corpo, especialmente em função de um padrão social, é uma experiência vivenciada ao menos uma vez na vida por praticamente todas as pessoas. Há também aqueles que já experimentaram uma situação de estranhamento um pouco mais profunda, confusa e exaustiva: a de não se sentir confortável na própria pele. Por trás de ambos os sentimentos estão cláusulas sociais e emocionais que nem sempre são compreendidas e respeitadas, mas que devem ser constantemente questionadas. Afinal, o que elas dizem sobre nós?
Certo, a intenção desse texto não é servir como um divã para uma análise psicológica e comportamental, mas achei pertinente provocar uma reflexão inicial que justificasse a discussão de um tema que aguça olhos e ouvidos: a identidade. Se constantemente nos questionamos sobre quem somos e o que nos diferencia em meio a bilhões de outros habitantes que caminham pelo mundo, talvez seja pertinente virarmos as lentes que estão focadas no interior de cada um para que haja luz no exterior.
Falar de cultura é uma tarefa árdua e, na minha opinião, infindável. Quando essa palavra se une com identidade, o peso se torna ainda mais evidente. A literatura nos diz que identidade cultural é um sistema de representação das relações entre indivíduos e grupos, que envolve o compartilhamento de patrimônios comuns como a língua, a religião, as artes, o trabalho, os esportes, as festas, entre outros. É um processo dinâmico, de construção continuada, que se alimenta de várias fontes no tempo e no espaço. Como consequência do processo de globalização, as identidades culturais não apresentam hoje contornos nítidos e estão inseridas numa dinâmica cultural fluida e móvel.
Apesar disso, há aspectos estruturais que norteiam a noção de cultura de acordo com o espaço e o tempo em que ela se desenha, e quando aplicamos isso a um estado, por exemplo, os contornos se tornam ainda mais propensos a mudanças. “A identidade cultural é construída a partir das diferenças. É uma construção social. Não sou eu, o prefeito de determinada cidade ou o presidente da república que vamos determinar uma identidade cultural. São as ações dos indivíduos ao longo da história que determinam o que podemos associar a uma identidade cultural”, destaca o historiador Tiago Arcanjo Orben.
Vejamos: o que representa a cultura do Sul do Brasil? As tradições gaúchas das centenas de CTGs espalhados pelo país? As etnias europeias que se instalaram na região? Ou expressões populares com raízes indígenas, lusitanas e afro-brasileiras, que resistem em redutos invisibilizados?
Não existe resposta simples para questões de cultura. “Não tem como a gente determinar uma identidade cultural. Nós, enquanto cidadãos, procuramos pensar como as identidades culturais, como os costumes e as práticas são constantes. A identidade busca categorizar algumas coisas para se constituir enquanto representante de um determinado local”, pontua Orben.
O tradicionalismo gaúcho, por exemplo, é a cultura tradicional mais cultivada na região – e a expressão do Sul mais reconhecida pelo restante do país, embora nem sempre seja vista como parte da brasilidade. É uma construção recente, do fim dos anos 1940, que não corresponde exatamente à cultura popular e folclórica do homem do campo que ela procura representar.
A partir disso, surge a questão central de um questionamento que, apesar de particular, é o ponto de partida para diferentes visões e interpretações acerca do processo da construção da identidade cultural do Paraná. Existe uma cultura tipicamente paranaense?
Essa pergunta começou a ser respondida ainda em 1853, posteriormente à emancipação da província do Paraná da Comarca de São Paulo, onde intelectuais, literatos e artistas plásticos desempenharam o papel de “arquitetos” de uma identidade local.
O Paranismo
A busca identitária está atrelada a um processo político, que ficou evidente no processo histórico paranaense. Além disso, a definição de identidades parte de questões relacionais, pode-se entender que a afirmação de um sujeito ocorre em oposição a outro. Por isso as disputas de identidades estão envoltas em declarações conflitantes sobre quais têm relevância e quais os direitos e obrigações relativos a elas. No Paraná, tal processo pode ser observado, e continua presente, nas determinações do estado sobre o que é ser paranaense.
O jornalista e historiador Alfredo Romário Martins foi um dos principais líderes do Movimento Paranista, que tinha a intenção de construir uma narrativa – mediante escritos históricos e objetos artísticos, produção cultural – de uma identidade do ser paranaense. A busca se deu por uma integração identitária, homogeneizante, que não valorizava as experiências dos mais distintos povos, com costumes e línguas diferenciadas que habitavam o território. Ele queria também mostrar ao Brasil que o progresso existia no Paraná. Apontar que o estado tinha uma história e, principalmente, que possuía identidade. Para isso, foi necessário forjar e até mesmo inventar algumas tradições, tanto por uma historiografia quanto por uma memória coletiva que unisse o “povo paranaense”.
Nesse contexto, os intelectuais do Paranismo - que também contava com João Turin, Zaco Paraná e Lange de Morretes, entre outros - fizeram com que o pinheiro e o pinhão virassem símbolos do estado, ao lado da ave gralha-azul. Alfredo, juntamente com intelectuais, literatos e pintores, assumiu ainda a heterogeneidade étnica como característica local. Consolidado em 1889 como estado, o Paraná ainda aprendia a lidar com a chegada dos quase 100 mil imigrantes. Com o paranismo, a identidade cultural se tornou uma colcha de retalhos dos costumes europeus. Afinal, o estado transformava-se, naquele período, em um verdadeiro xadrez étnico, com ucranianos, italianos, russos e poloneses.
O próprio termo paranista, inclusive, foi utilizado por ser mais amplo que paranaense. Ou seja, não precisava ser nascido no estado para se sentir membro dele. Mas essa aceitação dos imigrantes foi complexa. Os descendentes lusos-brasileiros não aceitavam que alemães, por exemplo, participassem do ramo comercial. O movimento aceitava a presença e a cultura europeia, mas tinha que ser cada um na sua. Exemplo disso é que Luis Fernando Pereira cita em seu livro Paranismo - o Paraná inventado, que os imigrantes deveriam ficar mais presentes em colônias rurais. Dentro do movimento, também havia a publicação da revista Ilustração Paranaense, que procurava mostrar o Paraná em franco progresso econômico.
Exclusão histórica
Em sua gênese, o Paranismo foi inovador, seguindo tendências nacionalistas europeias – principalmente o Simbolismo –, apoiado na vanguarda do final do século 19 e início do século 20, porém, gradativamente tornou-se altamente conservador, rejeitando as principais ideias renovadoras que surgiram.
No processo de construção de uma identidade paranaense, de busca de identificação com demais pessoas e pertencentes a um grupo, é notória a presença da distinção entre o “nós” e o “outro”, ou seja, ao se reconhecer como um grupo identitário, coeso, reconhece-se também a diferença em relação a outros grupos. É por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. Nesse sentido, afirmar a identidade é uma forma de estabelecer diferença, de separar o “nós” do “outro”, o que gera, muitas vezes, um processo de exclusão, de negação de identidade do “outro". Na escrita da história do Paraná e do movimento paranista, são perceptíveis essas diferenciações sociais que se hierarquizam ao negar a existência de grupos sociais distintos no processo histórico, como os indígenas e os afrodescendentes.
Na busca por uma identidade paranaense, os intelectuais paranistas se voltavam para diversos ângulos para encontrar referências sociais, geográficas, simbólicas, políticas e culturais que colocassem num ponto comum a população paranaense, e, para propagar esses símbolos e elementos identitários, se utilizavam da história e das artes. Com base nessas ideias que formariam as referências paranistas, foi se construindo um Paraná moderno, branco e masculino, pois se ocultava a existência de mulheres, imigrantes, indígenas e da população negra, invisibilizando esses grupos na história e na arte paranaenses. Na verdade, toda a discussão sobre a tipologia e identidade brasileiras da virada do século 19 para o 20 envolve uma crença, e uma esperança, na possibilidade da redenção das ‘raças inferiores’ pela civilização, isto é, pelo branqueamento.
“Existe uma narrativa mais primitiva de se fazer uma identidade cultural branca. Para a elite, não é conveniente construir uma identidade cultural do Paraná através dos indígenas. A gente precisa valorizar esses grupos sociais porque foram eles que constituíram e que constituem nossa identidade cultural. Mas será que é de interesse do Estado construir esse discurso? O que se preza é por uma cultura conveniente, ‘bonita’ e sem conflitos sociais. Por isso que, em termos de oficialidade, nós, teoricamente, temos uma identidade cultural”, considera o historiador.
Por consequência, o resultado desse apagamento das identidades indígenas e negras refletem no cenário atual de uma sociedade menos tolerante e plural. “Nesse sentido, talvez até tenha uma intencionalidade de formação de uma identidade, mas uma que não se associe com esses grupos étnicos. É como se o Paraná não quissesse se identificar com os indígenas e negros, mas, sim, com italianos e demais povos europeus. Ou seja, partimos de uma tentativa de construção de identidade que ignora outras coletividades. E isso é forte especialmente na nossa região", ressalta a antropóloga Jacque Parmigiani.
Em termos de políticas de estado, supostamente esquecer esses grupos sociais mostra-se mais conveniente porque se evita conflitos. “Então se a nossa história não tem os grupos indígenas, por exemplo, por que vamos dar atenção a eles? Vamos dar atenção para aqueles que realmente fizeram a história do Paraná. Essa é a lógica dessa construção identitária”, analisa Orben.
Reflexos
Apesar disso, é possível concluir que o Paranismo forjou, sim, uma identidade paranaense – provavelmente não a identidade imaginada por seus idealizadores –, e mais que isso, influenciou diretamente na manutenção da configuração geográfica do estado. A busca recorrente de inculcar seus ideais para os paranaenses, com a exploração da simbologia da natureza, foi determinante em tal processo. Se outros aspectos presentes no manifesto e escritos paranistas não se concretizaram, os símbolos se conservaram! As formas paranistas se perenizaram no ideário local. A visualidade incontestavelmente atuou a favor do Paranismo.
Atualmente, os símbolos do Paranismo continuam sendo amplamente utilizados em todo o estado, seja em representações oficiais ou representações da cultura local popular, provando que as dimensões estéticas e simbólicas do movimento criaram um terreno comum de identificação, gerando uma espécie de identidade cultural para o estado, que à época de sua emancipação sequer tinha suas fronteiras definidas. São símbolos que buscam a relação com a localidade, com a originalidade da sua população, não cedendo às imposições de estrangeirismos, como preconizavam os paranistas.
Todavia, as ideias paranistas, seu discurso, sua história, manifestos e ideais não atingiram integralmente todo o estado. Pelo menos não imediatamente, como buscavam, e nem da forma como intuíam. Mais do que a necessidade de se esculpir um paranaense ideal – o paranista – visando integrar os imigrantes com o objetivo de que todos sentissem-se responsáveis pelo estado em que habitavam levando-o ao desenvolvimento econômico, empenhados com o progresso, o intento de moldar uma identidade paranaense tornou-se um desafio para a jovem intelectualidade paranista.
Um intento ousado e desafiador, visto a subjetividade da construção identitária individual e, principalmente, populacional. Diversas são as variáveis envoltas na concepção de uma identidade. Aspectos políticos, culturais e sociais divergentes entre as regiões do estado deviam ser homogeneizados para a criação de uma identidade local.
No caso paranaense, com a preocupação de unificar essa população tão diversa, a intelectualidade assumiu um desafio maior que a própria realização. No entanto, atualmente não se pode afirmar que tal intento não tenha sido atingido mesmo que parcialmente, tendo em vista que, ao reconhecer os símbolos do Paranismo como representação do estado, cada paranaense perpetua os ideais do movimento. Por mais que com estética, soluções plásticas e formas de adoção da visualidade do Paranismo distintas do original.
Afirmar que o paranaense desenvolveu uma identidade cultural ainda é passível de interpretações. Contudo, uma identidade visual foi claramente construída, pois atualmente, por exemplo, os habitantes do estado relacionam a araucária como símbolo do estado, chamando-o de pinheiro-do-Paraná, mesmo desconhecendo os motivos que levaram à adoção de tal árvore para atribuição deste significado. Além deste símbolo, suas variantes – pinha e pinhão – são também amplamente usados em estabelecimentos comerciais, propagandas públicas, manifestações populares, em um processo de afirmação visual e retroalimentação deste processo, iniciado pelo movimento.
Os símbolos paranistas carregam uma história, uma tradição inventada, um passado forjado, a identidade buscada. A partir destas imagens, o estado é reapresentado aos novos habitantes paranaenses, a memória está em permanente construção. Portanto, os ideais paranistas ainda hoje estão sendo reforçados, contudo, com aparência distinta da dos idealizadores.
Cultura viva
Alguns historiadores, a exemplo de Geraldo Leão Veiga de Camargo, consideram o Paraná um estado típico desses que não tem um traço que faça deles alguma coisa notável, nem geograficamente como a Amazônia, nem pitorescamente como a Bahia ou o Rio Grande do Sul. Além disso, ainda acredita que o “ser paranaense” não existe. Orben, por outro lado, acredita que a nossa diferença seja justamente a diversidade de diferentes ocupações que constituem o Paraná. “E eu não vejo problema em não termos uma identidade demarcada como têm os gaúchos, paulistas e cariocas, por exemplo. Na maioria das vezes, a construção de uma identidade cultural muito mais exclui do que inclui. A pergunta que devemos fazer é: será que conseguiríamos uma identidade que incluísse e representasse toda a história e seus grupos?”, questiona Orben.
A cultura tradicional, como é viva, sofre várias modificações e inclusive morre, mas é substituída por outras coisas. “A história [do Paraná] está em processo, está sendo pensada. Devemos pensar a identidade cultural enquanto prática social. Ela ainda não está acabada em termos de oficialidade. E ainda temos conflitos sociais associados a isso, a exemplo da exclusão social dos grupos indígenas, a não demarcação de terras indígenas e todos os interesses políticos e econômicos por trás disso”, lembra.
Além disso, a identidade é fluida no sentido em que alguns elementos são acionados e outros apagados para constituir aquilo que determinado grupo quer naquele momento. Logo, a ideia de identidade tem um uso político e ideológico.
Batendo a massa
Uma das razões para a falta de reconhecimento de uma identidade cultural “autônoma” do Paraná, na visão dos pesquisadores, é a proximidade histórica das levas de imigrantes. Nossa formação social é muito recente. Até os anos 1950, por exemplo, ainda havia notícias de pessoas que não falavam português no bairro do Taboão, em Curitiba. Essa dificuldade de amálgama como povo nos atrasa. Temos uma série de etapas a cumprir até termos uma identidade e repensar os currículos dos bancos escolares talvez seja um dos caminhos para facilitar que o conhecimento sobre as verdadeiras origens do Paraná não continuem no esquecimento.
Entre invenções e tradições, permito-me comparar a formação cultural do Paraná à preparação de um bolo. O nosso ainda precisa ser assado. Conseguimos ver cada um dos ingredientes, mas ainda estamos batendo a massa. E ainda falta muito para vendermos o bolo como o mais gostoso do Brasil.
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